No dia seguinte ao ato convocado por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, o saldo é mais revelador do que surpreendente. Embora anunciado como uma manifestação em defesa da anistia aos investigados e condenados pelos ataques golpistas de 8 de janeiro, o evento, que reuniu cerca de 45 mil pessoas, segundo estudo da USP, teve outro foco: a construção de uma narrativa de perseguição e o aceno a uma base radicalizada.
Do alto do carro de som, Bolsonaro repetiu acusações infundadas contra o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ignorou as investigações em curso e os documentos que o colocam como autor intelectual de uma tentativa de golpe. Disse ser alvo de um “sistema” que quer calá-lo. Nenhuma palavra sobre o conteúdo das mensagens obtidas pela Polícia Federal, que indicam articulações para subverter o resultado das eleições de 2022.
O ex-presidente foi acompanhado por parlamentares e ex-ministros, que endossaram o discurso revisionista. A pauta da anistia, no entanto, serviu mais como pretexto do que como objetivo. Como analisou o jornalista Ricardo Noblat, o verdadeiro propósito do ato foi testar os limites da mobilização bolsonarista e provocar as instituições. A presença massiva de apoiadores, muitos vindos de outras cidades, evidencia que Bolsonaro ainda detém capital político, embora muito abalado em sua capacidade de mobilização, uma vez que não conta mais com possibilidades obscuras de financiamento. Mas sua retórica vai se afastando cada vez mais da legalidade.
Mentiras sobre urnas eletrônicas e distorções de decisões judiciais voltaram a ocupar o centro da fala do ex-presidente. O projeto, claramente, não é o retorno pela via democrática. É manter acesa uma chama de insatisfação permanente, que mina a confiança pública nas instituições e alimenta teorias conspiratórias. Isso fragiliza o debate político e dificulta qualquer tentativa de reconstrução do pacto democrático.
O silêncio sobre as provas apresentadas pela PF, que incluem minutas de decreto para instaurar estado de sítio, reforça a estratégia de negação. Ao posar de perseguido, Bolsonaro procura desviar o foco de suas responsabilidades. A tática é conhecida: deslocar a discussão do campo jurídico para o político, criando um ambiente de confronto permanente.
A manifestação também coloca em xeque o papel dos aliados no Congresso. Ao aparecerem ao lado de um réu por tentativa de golpe, muitos parlamentares deixam claro que não há consenso sobre os limites da institucionalidade. Isso compromete o funcionamento dos próprios Poderes e lança dúvidas sobre o comprometimento desses atores com a Constituição.
Apesar do discurso inflamado, o evento não teve incidentes graves, exceto pelas já tradicionais brigas entre os próprios bolsonaristas e seguranças privados por posições de privilégio midiático para gravar seus cortes para as redes sociais. A segurança foi reforçada e o policiamento ostensivo garantiu a ordem. Mas a aparente tranquilidade não deve enganar. O conteúdo político do ato aponta para a continuidade de uma escalada retórica que já se mostrou perigosa no passado recente.
O que se viu ontem na Paulista não foi apenas uma manifestação. Foi um ensaio. E, como tal, merece atenção redobrada. Não se pode e não se deve esquecer ou perdoar grupelhos que já atentaram uma vez contra o Estado e a Constituição, sob pena de que repitam tal mal-feito e de forma ainda mais intensa.